Língua e cultura são geralmente considerados dois pilares inseparáveis daquilo que se entende por ensino de língua.
Ao longo de toda a história do ensino de línguas como o conhecemos, inúmeras pessoas que desenvolveram pesquisa nas mais diversas vertentes teóricas do ensino e da aprendizagem de língua defenderam o ensino de cultura como possibilidade de enriquecimento e de consolidação daquilo que se aprende sobre a língua.
Em qualquer treinamento de professores para seguir um método pronto, o ensino de cultura dos países falantes da língua-alvo aparece como conteúdo que não pode ser esquecido. Nos cursos de licenciatura, existem disciplinas obrigatórias de língua e de cultura - isso quando as duas não se fundem em uma mesma disciplina, sob um nome como "Língua e Cultura Francesa".
Mas não é difícil encontrar algumas contradições nessa ideia, prof.
Primeiro, vamos retomar o básico sobre o ensino de cultura na aula de língua:
Chega de reproduzir estereótipos culturais nas aulas de língua, prof. E não só porque eles são preconceitos velados, mas também porque são mentirosos!
Nenhuma definição de estilo de vida de todo um povo condiz com o atual estágio de globalização em que está a maior parte dos povos do mundo.
A ideia de que existe uma correlação entre país, língua e cultura é extremamente problemática por um segundo motivo: ela foi uma categorização imposta por colonizadores europeus a todo o mundo.
Vejamos o Brasil, por exemplo: não se tratava de um território unificado. Coabitavam aqui diversos povos, falantes de inúmeras línguas, e as primeiras divisões territoriais foram impostas de maneira violenta, por pessoas que vieram de fora com o objetivo de dominar a região por meio da força.
Mas a artificialidade da categorização entre países e "suas" línguas não se resume aos países colonizados. A própria separação entre as línguas vernáculas derivadas do latim - dentre elas, português, espanhol, italiano e francês - como línguas separadas umas das outras é completamente inventada.
Mas calma, prof! Não estou afirmando que na Itália não se fala italiano e que não existe uma cultura italiana, ok? A questão não é essa. A questão é a seguinte: o atrelamento de uma cultura a um país e a uma língua é, e sempre foi, uma estratégia colonial.
O processo de gramatização das línguas vernáculas foi uma parte importante do projeto de dominação europeia: Elio Nebrija, autor da primeira Gramática de la lengua castellana, argumentava que a compilação de um livro de gramática para o vernáculo espanhol era um importante símbolo de mudança de status dessa língua.
Isso porque as línguas vulgares não tinham gramática definida. Assim, estabelecer uma gramática para o espanhol representava a possibilidade de impor a língua castelhana aos povos colonizados, expandindo o poder da Espanha.
Ok! Voltando para os dias de hoje: a imposição cultural dos países hegemônicos é muito explícita, em pleno século XXI. Desde a vestimenta considerada adequada, passando pela religião dominante, ate os métodos de ensino de língua que empregamos no Brasil vêm da colonização europeia, com requintes de neocolonialismo estadunidense.
E mesmo diante do reconhecimento de que ensinar sobre a cultura dos países hegemônicos não significa impor uma perspectiva de assimilação cultural, continua sendo no mínimo intrigante essa insistência em associar uma língua de prestígio aos habitantes de um país hegemônico, reforçando a distância entre o conhecimento que aprendizes brasileiros desejam ter e as condições de vida daqueles que já detêm esse conhecimento.
Por isso, cabe nos questionarmos:
Até que ponto é relevante que o nosso aluno brasileiro aprenda tantas informações sobre a cultura de um país distante, que nunca visitou nem tem previsão de visitar?
A quem interessa que o aprendiz brasileiro se 'esqueça' da própria realidade e dedique seu tempo a assimilar informações sobre o modo de vida dos outros?
Em que isso contribui para a aprendizagem de uma língua, se a gente está falando de aprender para se apropriar da língua, e não para imitar falante nativo?
E se usássemos uma parcela do tempo dedicado a explicar os costumes de povos hegemônicos para trazer questionamentos mais relevantes para o aluno brasileiro? Qual seria o resultado dessa postura na motivação e na autoconfiança do nosso aluno em relação ao uso daquilo que está aprendendo, livre de comparações com povos ditos superiores?
Inspirado em:
VERONELLI, Gabriela. The Coloniality of Language: Race, Expressivity, Power, and The Darker Side of Modernity. Wagadu, v. 13, 2015, pp. 108-134.
Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)