Já discutimos aqui os efeitos da colonialidade linguística no Brasil, e como ela se faz presente até hoje.
Mas, conforme afirmou Karl Marx, em sua tese de número onze sobre Feuerbach, não basta compreender a realidade; é preciso transformá-la.
Eis a questão: como combater a colonialidade linguística?
O primeiro passo é superarmos o chamado "ensino de línguas", tradicional e ultrapassado, pelos princípios da Educação Linguística.
(Um parênteses: a palavra "tradicional" costuma ser vista de forma positiva, não é? Será que não está na hora de questionarmos essa visão? Ao menos em matéria de educação, tradicionalismos e conservadorismos definitivamente não são coisa boa!)
Uma Educação Linguística crítica passa pela conscientização, que é necessariamente política.
Assim, ela deve incluir uma conscientização acerca da colonialidade em todos os seus aspectos, muitos deles já comentados por aqui antes. Vamos retomar os quatro principais:
- a imposição do português como língua oficial no Brasil desde o século XVIII e, como consequência, a nomeação da língua falada por nós até hoje como "português";
- o sucateamento da escola pública, de modo a manter as massas localizadas na base da pirâmide sem mobilidade socioeconômica;
- a discriminação contra o linguajar popular, distante das normas rígidas prescritas em livros e daquilo que é definido por uma elite como "norma culta", incluindo até mesmo os sotaques de regiões brasileiras fora do eixo hegemônico Sul-Sudeste;
- mais recentemente, a aversão à linguagem neutra de gênero, sob justificativas conservadoras e desconectadas do âmbito social.
Todas essas questões já foram internalizadas pelo próprio povo brasileiro, e se tornaram parte da mentalidade brasileira. Não coincidentemente, o povo brasileiro segue com dificuldades em relação à própria língua, e o acesso a outras línguas é cada vez mais escasso...
Quer prova maior de que qualquer vestígio de conservadorismo linguístico não combina com uma verdadeira educação linguística?
O conservadorismo linguístico, isto é, a colonialidade linguística, está acabando com a nossa competência viva, livre e fluida de nos expressarmos como quisermos!
Um povo fadado a repetir as tradições colonialistas não tem condições de enxergá-las de fora e posicionar-se contra elas. O sucateamento das escolas brasileiras – não só as públicas! – garante a reprodução desses paradigmas ultrapassados.
Naturalizou-se a dependência dos cursos de línguas privados, das provas de proficiência importadas, de uma suposta "necessidade" elitista de viajar ao exterior para tornar-se fluente em determinada língua.
É óbvio que essas ideias, plantadas pela colonialidade, foram muito bem cultivadas pela ideologia do neoliberalismo. Conforme demonstrei em um artigo publicado em 2018, a máscara de "liberdade" esconde mecanismos de rígido controle da sociedade:
A oferta de línguas nas escolas é restrita, os critérios de proficiência são restritos, as possibilidades gramaticais são restritas, o método deve ser seguido à risca, se usa uma língua de cada vez, e mesmo o acesso à nossa própria língua é restrito!
Está clara a relação extremamente próxima entre conservadorismo e neoliberalismo? O neoliberalismo reduz, controla e proíbe – vestígios da colonialidade linguística.
Bem, vamos às questões práticas. Entender a proposta da Educação Linguística e aderir a ela significa:
- entender que a gramática foi artificialmente inventada, e não é algo "natural" (essa é fácil, vai);
- entender que a língua falada no Brasil é brasileiro – ou brasileire! – ou Pretuguês, nas palavras de Lélia Gonzalez, ou, ainda, brasilês, conforme a sugestão de um seguidor muito inteligente;
- entender que ninguém evolui por igual em todas as competências linguísticas, isso mesmo, ninguém;
- abandonar por completo o conceito de “aprender primeiro a sua língua, depois outras línguas”, pois essa falsa separação entre recursos linguísticos limita e exclui.
As limitações da colonialidade, reforçadas pelas políticas neoliberais, são o extremo oposto de uma educação libertadora e transformadora. Não é difícil entender por que certas pessoas detestam Paulo Freire... elas o temem!
Trabalhar por uma educação linguística transformadora exige sair da zona de conforto. Assim, uma educação linguística transformadora remete à transformação de toda a nossa compreensão do que é a competência linguística.
E essa competência não comporta limitações conservadoras.
Nas palavras de Canagarajah (2013),
Quando as normas gramaticais são tratadas como construtos ontológicos, com uma realidade objetiva própria, oculta-se a diversidade inerente à comunicação e a todas as práticas que geram significado.
Faz sentido continuar ocultando a diversidade, em pleno solo brasileiro?
Inspirado em:
CANAGARAJAH, Suresh. (Ed.). Literacy as Translingual Practice: Between Communities and Classrooms. New York: Routledge, 2013.
GRILLI, Marina. Passado, presente e futuro do ensino de línguas no Brasil: métodos e políticas. Linguagens - Revista de Letras, Artes e Comunicação, v. 12, n. 3, p. 415-435, 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.7867/1981-9943.2018v12n3p415-435.
Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)