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A verdade que ninguém percebeu sobre as escolas particulares

Era digital. Tecnologia. Ensino híbrido. Hiperconectividade. Sala de aula invertida. Educação 2.0, 3.0, 4.0.


Quantas vezes você já se deparou com esses termos nos últimos anos? E desde o início da pandemia?


Quantas vezes você já se deparou com esses termos hoje mesmo?


Era digital é uma das melhores formas de definir os tempos em que estamos vivendo. Ausência de fronteiras entre vivências físicas e virtuais, aparelhos ligados 24 horas por dia, monitoramento inteligente de anúncios, mais telefones celulares do que pessoas.


Não é nenhuma novidade que a educação não tem acompanhado as rápidas mudanças nas formas de interação e de produção e divulgação de conhecimento. Os índices de subletramento no Brasil, também chamado analfabetismo funcional, estão entre os mais altos do mundo!


As escolas públicas têm sido sucateadas há décadas, num projeto de poder que, para dizer o mínimo, tem como objetivo manter as grandes massas sem qualificação, relegadas a trabalho braçal sob condições precárias, a fim de sustentar as camadas superiores da pirâmide.


Enquanto isso, as empresas privadas de educação crescem a todo vapor. Embora também sejam atingidas por agravamentos na crise econômica, governantes não poupam esforços para resgatá-las, pelos mesmos motivos do parágrafo anterior: poucos serão os indivíduos a ter acesso a uma formação de melhor qualidade, garantindo a baixa mobilidade social da população brasileira.


Um exemplo são os vouchers de desconto distribuídos em algumas localidades onde não há vagas suficientes nas creches públicas, a serem usados para pagar creches privadas.


Entretanto, a mentalidade ou mindset empresarial aplicada à educação tem levado muitas dessas empresas a cometer um erro.


Vamos observar, por exemplo, a seguinte vaga de emprego para um grande grupo educacional, que encontrei no LinkedIn exatamente como consta na imagem.


Você consegue adivinhar o que me incomodou ao ver esse anúncio?


Uma dica: não se trata da palavra customer, considerando estudantes como clientes. Esse não é o problema aqui.


Aliás, esse tipo de crítica não faz sentido, pois é isso que são as empresas da educação privada: empresas.



Errado é insistir em não perceber que a dinâmica é essa. Que pagar por um serviço, por mais nobre que ele possa ser, transforma quem paga em cliente. E que o objetivo de qualquer empresa é que clientes gerem lucro.

(Outra dica: já mencionei brevemente esse assunto aqui.)


Vamos continuar.


A página de anúncios ao lado, também no LinkedIn, pertence a outro grupo educacional.


As vagas em aberto são diversas, mas... será que já ficou claro o que elas têm em comum?


Ou melhor, o que essas vagas não têm?


O que está faltando?


Eu sei, pode parecer sensacionalismo. Mas a verdade é que tenho monitorado as vagas de diversas empresas da educação no LinkedIn há pelo menos um ano, e, infelizmente, a esmagadora maioria delas segue um padrão.


Você conseguiu perceber qual cargo raramente aparece nas vagas desse tipo de empresa?


Nas holdings da educação, não há espaço para... educação.


Não há vagas para docentes!


Marketing e setor comercial ou financeiro lideram em disparada. A área de Recursos Humanos também costuma aparecer com alguma frequência. Mas cadê as vagas para profissionais da educação, de fato?


Vamos dar uma olhada nas vagas de uma terceira grande empresa, que gerencia várias escolas privadas.



Bem, agora você deve estar pensando: mas tem uma vaga de tutor na segunda imagem, sim! Quem disse que não se contrata docentes? Estão em menor número, é verdade, mas existem.


A cada 9 vagas, 1 é para ensinar, certo? Não pode ser tão ruim assim. É coincidência. Marketing também é essencial!





Então vamos ler a descrição detalhada da tal vaga de tutor.





Ora, aí está a única vaga relacionada ao ensino, dentro de uma grande empresa de ensino. Em primeiro lugar, não é uma vaga de ensino propriamente dita, e sim, de tutoria: uma proposta completamente diferente, que não atribui ao indivíduo nenhuma responsabilidade didática, tampouco requer formação na área.


Em segundo lugar, é uma vaga de tutoria em... tecnologia. Surpresa!


Se três exemplos parecerem muito pouco, experimente você: busque por grandes empresas do setor educacional brasileiro e observe as vagas em aberto. Se encontrar vagas em educação, comemore comigo!


Entretanto, nós não devemos nos perguntar por que as empresas de educação só contratam profissionais de programação e marketing.


Essa resposta é óbvia, e já estava explícita em uma das primeiras palavras que comentamos neste texto: customer. Clientes.


Vamos repetir: o objetivo de qualquer empresa é que clientes gerem lucro. E o papel do marketing é captar mais clientes. Portanto, o setor primordial de qualquer empresa privada, da educação ou não, é o marketing.


Afinal, um bom produto com marketing medíocre não vende tanto quanto um produto medíocre com bom marketing.


O que devemos nos perguntar é qual o papel da educação no meio disso tudo.


Enquanto as famílias (clientes!) contratam educação de ponta, seu investimento é revertido para tecnologia de ponta. Equipamentos de última geração potencializam os recursos de assimilação do conteúdo.


Mas que conteúdo?


O mesmo conteúdo que as escolas ensinam há décadas, tão insuficiente que nos levou aos piores índices do mundo?


E a equipe docente? Qual a formação que está recebendo, de acordo com as novas demandas?


Está claro que a formação "oficial" é cada vez menos valorizada, por propostas como a formação-relâmpago para atuar temporariamente em escolas públicas ou o gigantesco desencorajamento da formação em áreas do conhecimento consideradas menos rentáveis.


Por sua vez, a formação docente continuada também tem sido abandonada: virou sinônimo de treinamento em tecnologia. De oficinas sobre os recursos da plataforma Zoom a imersões sobre ensino híbrido, é grande a oferta de cursos livres para profissionais da educação, nas mais diversas áreas!


Desde que o conteúdo ensinado continue, inevitavelmente, o mesmo.


Afinal, basta mudar a embalagem, não é?


Para as empresas que sofreram com a grande queda nas matrículas e a inadimplência, devido à pandemia, talvez baste. Expandir a equipe de marketing, elaborar ações direcionadas à experiência do cliente e monitorar o customer success. Problema resolvido! Logo surgem novas matrículas.


Mas o que pensam as famílias-clientes que tanto investem na educação de suas crianças?


Por que não as matricularam na escola pública? Para que tivessem acesso a uma educação de qualidade, não sucateada, mais de acordo com as demandas da era digital?


Será que esse objetivo tem sido atingido? Será que trocar o caderno pelo tablet é suficiente?

menina estudando com laptop

Será que, enquanto as gestoras de escolas privadas investem pesado em equipamentos digitais, em marketing e no setor financeiro, a qualidade do ensino aumenta magicamente?


O modo como essas crianças estão aprendendo pode até ser adequado aos novos tempos. Mas e o que estão aprendendo?


É adequado também, ou continua ultrapassado?


Diante de tantas vagas para analistas de experiência da família-cliente, onde está quem de fato trabalha para construir essa experiência? Onde está a coordenação pedagógica multidisciplinar? A integração das inteligências múltiplas, incluindo as artes visuais e da música?


Onde está a etnomatemática? A formação esportiva intercultural? A educação linguística translíngue?


A pergunta que não quer calar, ou melhor, que se tenta calar, permanece sem resposta.


Em meio a tablets, jogos online interativos e links para lousas digitais, onde foi parar a educação?

 

Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)

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